Panorama geral do Relatório Social Watch 2012: O direito a um futuro

Roberto Bissio

A Assembléia Geral das Nações Unidas encomendou uma conferência de cúpula que será celebrada em junho de 2012, no Rio de Janeiro, Brasil, a cidade que acolheu há vinte anos a histórica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Conhecida popularmente como a Cúpula da Terra, a conferência do Rio de 1992 respaldou a noção de desenvolvimento sustentável e aprovou as convenções internacionais sobre a mudança climática, a desertificação e a biodiversidade.

A Comissão Brundtland(*) definiu naquele momento o “desenvolvimento sustentável” como “um conjunto de políticas que satisfazem as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades”. Tem sido entendido comumente como determinante dos requisitos da esfera social (mediante a erradicação da pobreza) permitindo, ao mesmo tempo, que a economia cresça respeitando o meio ambiente.

A cúpula do Rio de 1992 não ofereceu uma definição do que são exatamente as “necessidades do presente”, mas na série de conferências da ONU dos anos noventa foram definidos vários compromissos sociais, entre os quais o de erradicar a pobreza e alcançar a igualdade de gênero, e foram identificados vários indicadores e objetivos. Cada país deveria decidir sobre as políticas para atingir esses objetivos e metas acordados universalmente. No entanto, após o colapso do Pacto de Varsóvia e a desintegração da União Soviética, parece haver um consenso generalizado de que o caminho a seguir era o do livre comércio e da liberalização econômica.

Desse modo, a Organização Mundial do Comercio, criada em 1995, anuncia em seu portal na Web que "a abertura dos mercados nacionais ao comercio internacional (...) alentará e contribuirá para o desenvolvimento sustentável, aumentará o bem-estar das pessoas, reduzirá a pobreza e fomentará a paz e a estabilidade". Do mesmo modo, o primeiro artigo do Convênio Constitutivo do Banco Mundial, emendado em 1989, estabelece como objetivo "promover o crescimento equilibrado e de longo alcance do comércio internacional, bem como a manutenção do equilíbrio das balanças de pagamento, estimulando investimentos internacionais para fins de desenvolvimento dos recursos produtivos dos membros, ajudando assim a aumentar a produtividade, elevar o nível de vida e melhorar as condições de trabalho em seus territórios".

Estas duas poderosas organizações internacionais deram forma às políticas econômicas dos países em desenvolvimento nas últimas duas décadas, através de suas resoluções sobre o comércio e as condições impostas às economias endividadas. Ambas estão de acordo em afirmar claramente que o crescimento comercial e o econômico constituem os objetivos principais de suas políticas e as contribuições mais importantes ao desenvolvimento sustentável de seus países membros.

E tiveram êxito: o total das exportações no mundo multiplicou-se quase cinco vezes em vinte anos, passando de um valor total de 781 bilhões de dólares americanos em 1990 a 3.7 trilhões de dólares em 2010. No mesmo período, o habitante médio do mundo mais que duplicou sua renda de 4.079 dólares americanos por ano em 1990 a 9.116 dólares em 2010.

O déficit da dignidade

Estes indicadores aludem a uma abundância de recursos mais que suficientes para garantir as necessidades essenciais dos sete bilhões de habitantes do mundo. E, no entanto, muitos deles padecem fome.

Para monitorar as privações, Social Watch desenvolveu um Índice de Capacidades Básicas (BCI), que é uma média da mortalidade infantil, nascimentos atendidos por pessoal especializado e educação fundamental. Estes três indicadores são muito básicos e deveriam atingir cem por cento, isto é, nenhuma criança deveria estar fora da escola, nenhuma mulher deveria dar à luz sem assistência e nenhuma criança nascida viva, ou menos de um por cento delas, deveria morrer antes de completar cinco anos, uma vez que as principais causas dessas mortes evitáveis são a desnutrição e a pobreza. Todos os indicadores calculados no BCI formam parte dos objetivos acordados no nível internacional e refletem aquilo que um piso social mínimo deve alcançar. Abaixo disso há um déficit de dignidade.

Mas o mundo está longe de atingir esses objetivos básicos. O BCI subiu apenas sete pontos entre 1990 e 2010, o que é um avanço muito pequeno. Na realidade, esse avanço foi de pouco mais de quatro pontos percentuais entre 2000 e 2010. É a tendência oposta ás linhas para o comércio e a renda, que cresceram mais rápido depois do ano 2000 que na década anterior. É surpreendente que os indicadores sociais tenham avançado mais lentamente depois da mudança de século, apesar dos excelentes resultados da economia e do compromisso internacional de acelerar o progresso social e atingir os ODM.

A razão óbvia dessa divergência de tendências entre os indicadores econômicos e sociais é o crescimento desigual dentro de cada país e entre os países. E os indicadores sociais só podem piorar, pois o impacto da crise financeira global que começou em Wall Street em 2008 ainda não está registrado nas estatísticas comparáveis no nível internacional. Os números básicos demonstram que a prosperidade não “goteja”. Costumava ser de sentido comum que uma economia em crescimento beneficiaria os pobres, que a maré crescente levantaria todos os barcos, grandes ou pequenos, ou que o bolo tivesse que crescer primeiro antes de ser repartido, mas os indicadores de progresso social parecem mostrar o contrário.

Crescimento a qualquer custo

O crescimento da economia é uma prioridade para todos os governos. Alguns o definem como um primeiro objetivo político porque foi muito lento ou inclusive reverteu-se durante a crise financeira global que começou em 2008. A desigualdade é a razão pela qual, contra qualquer teoria e modelo, a pobreza não está diminuindo, ou o está fazendo de maneira muito lenta, inclusive em países onde a economia está crescendo rapidamente. Ao dar às empresas mais direitos sem as obrigações correspondentes, a globalização exacerbou as desigualdades entre as nações e dentro delas. Tanto nos países ricos como nos pobres, apenas uma pequena minoria beneficiou-se do excelente resultado econômico mundial até a crise financeira de 2008. E depois, aos que não se beneficiaram, foi pedido que pagassem para resgatar um sistema bancário nos países mais ricos do mundo que havia se tornando “grande demais para fracassar”.

O crescimento econômico requer energia, e a energia está no coração de muitos dos problemas denunciados pelas coalizões dos países da Social Watch nesse informe. A extração de petróleo é identificada facilmente com a poluição, mas fontes de energia supostamente “mais limpas”, tais como represas hidroelétricas, aparecem como problemáticas em vários depoimentos.    

Os biocombustíveis, frequentemente etiquetados como "ecológicos", são uma causa importante de perturbação do meio ambiente na Colômbia, onde o apoio governamental à monocultura agroindustrial (que proporciona os insumos para os biocombustíveis) está causando o deslocamento de populações inteiras de pequenos agricultores. E se fosse pouco, isso nem sequer é resultado da demanda interna, mas sim das necessidades dos Estados Unidos, subsidiado por empréstimos de bancos multilaterais de desenvolvimento. A desertificação aparece uma ou outra vez nos informes como um problema importante, especialmente na África. A mudança climática também é a causa do desastre oposto, catastróficas inundações que assolaram a América Central em 2011 e o Benin em 2008 e 2010, onde as lavouras foram destruídas e se registraram casos de cólera, meningite e febre amarela.

Direitos na base

Quando os direitos civis e políticos básicos não estão presentes, a sociedade civil é incapaz de organizar-se pacificamente, as pessoas não podem fazer com que sua voz seja ouvida e a qualidade das políticas é afetada. Na Eritréia, “o inferno da África”, e na Birmânia, afirma-se claramente a necessidade de um governo democrático como requisito prévio, do mesmo modo que a Palestina expressa que não há desenvolvimento possível sob a ocupação estrangeira, ou que o Iêmen adverte dramaticamente que “pouco se pode avançar para o desenvolvimento sustentável porque o país está à beira da guerra civil e enfrenta uma fome generalizada e uma catástrofe social”.

No entanto, a sociedade civil mostra uma assombrosa capacidade de recuperação e desenvolve una grande criatividade sempre que tem a mínima oportunidade. No Iraque, as manifestações que sacudiram o país em fevereiro de 2011 exigindo a eliminação da pobreza, do desemprego e da corrupção, ilustram o novo papel que está começando a desempenhar a cidadania iraquiana em uma sociedade onde anteriormente a participação democrática era violentamente reprimida ou silenciada completamente. Embora ainda em meio a um ambiente de insegurança e liberdades civis muito deficientes, as organizações da sociedade civil estão crescendo e desempenhando um papel cada dia maior no desenvolvimento da nação, e estão se unindo à insurgência democrática da "primavera árabe" da região.

No Quênia, após muitos anos de luta por uma soberania e uma cidadania verdadeira, finalmente se conseguiu negociar uma Constituição inovadora em 2010. Seu enfoque nos direitos fundamentais, na participação, na prestação de contas à cidadania, oferece a base para definir o papel do Estado como elemento central para a construção de una economia que cumpra com a promessa de equidade e direitos sociais e econômicos fundamentais. Em termos ambientais, a nova Constituição também é um passo à frente, uma vez que estabelece o direito de todos os quenianos a um meio ambiente limpo e saudável.

Na Bolívia e no Equador, os processos de reforma constitucional, respaldados também por grandes maiorias, reforçaram os direitos dos povos indígenas e em lugar de utilizar a frase “desenvolvimento sustentável” inspiraram-se em suas culturas para estabelecer, constitucionalmente, os direitos da Pachamama (Mãe Terra).

Na Itália, mesmo que o desenvolvimento sustentável nunca tenha sido parte das prioridades do Governo de Berlusconi, quatro exitosos referendos promovidos pela sociedade civil (contra a energia nuclear, a privatização forçada da água e outros serviços públicos e contra a exoneração do Primeiro Ministro da norma jurídica) levaram quase 27 milhões de italianos às urnas e conseguiram encaminhar o país para a direção correta. As lutas ambientais, recorda o informe da Bulgária, foram muito importantes na luta do país pela democracia. Agora, depois de anos de crescente apatia, cada vez mais pessoas estão se envolvendo em assuntos ambientais. A introdução de Organismos Geneticamente Modificados (OGM) no mercado e várias falhas na implementação do programa NATURA 2000 para a conservação de áreas naturais converteram-se em dois grandes temas no debate político e na mobilização cidadã.

Desenvolvimento sustentável: metas ou direitos?

Mediante o monitoramento dos esforços de luta contra a pobreza e as estratégias de desenvolvimento no nível nacional e internacional, Social Watch encontrou que os indicadores econômicos e os indicadores de bem-estar social não estão correlacionados. Portanto, há que revisar de forma urgente as estratégias econômicas para alcançar os objetivos acordados internacionalmente e que o usufruto dos direitos humanos seja uma realidade para todos.

Na Cúpula da Terra, os líderes do mundo afirmaram que “a principal causa da deterioração contínua do meio ambiente mundial é o padrão insustentável de consumo e produção, particularmente nos países industrializados (...) o que agrava a pobreza e os desequilíbrios". Isso é tão verdade hoje como o foi em 1992.

Atuando sozinho, nenhum estado pode prover os bens públicos do mundo, e isso inclui a preservação da vida, as funções de apoio à atmosfera e aos oceanos (ameaçados pela mudança climática global) ou a confiabilidade e a estabilidade do sistema financeiro global, indispensável para o comercio e o desenvolvimento, mas ameaçado pela especulação livre de obstáculos, pela volatilidade monetária e pela crise da dívida. O fato de não fornecer esses bens públicos afeta o sustento de bilhões de pessoas em todo o mundo e põe em perigo o bem público que inspirou a criação nas Nações Unidas: a paz mundial.

Além do mais, apesar das recomendações formuladas pela Cúpula da Terra para desenvolver indicadores de desenvolvimento sustentável, e todo o trabalho realizado nessa área deste então, a comunidade internacional ainda carece de indicadores de consenso para medir a sustentabilidade dos bens públicos mundiais sob sua vigilância.

Ecologia e economia
Há duas ciências modernas cujos nomes têm origem na palavra grega oikos (casa). A Ecologia, ciência que estuda as relações que os seres vivos têm entre si e com o meio ambiente onde vivem, estabelece os limites acima dos quais certas atividades podem causar danos irreversíveis. E a economia, ciência que lida com as relações entre os recursos finitos e os desejos humanos infinitos. Em 1932 Lionel Robbins definiu a economia como “a ciência que estuda as formas de comportamento humano  resultantes da relação entre fins e meios escassos que têm usos alternativos.”
A novidade não é a noção de limites. A “novidade” – e a urgência – é que as atividades humanas chegaram ao limite global e, portanto, alcançar estratégias consensuadas globalmente é necessário.

O informe da comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi(**) sugere claramente que os indicadores de bem-estar e os indicadores de sustentabilidade têm uma natureza diferente, e os compara com o painel de um automóvel, com diferentes indicadores para a velocidade e o combustível restante. Um informa sobre o tempo necessário para chegar a determinado destino e o outro tem a ver com um recurso necessário que está sendo consumido e pode atingir um limite antes de chegar ao destino.

O marco de direitos humanos estabelece objetivos claros para os indicadores de bem-estar. Os direitos à alimentação, à saúde, à educação, impõem o mandato de levar a assistência universal a todas as crianças, a redução da mortalidade infantil a menos de 10 mil por nascidos vivos (já que a mortalidade acima dessa cifra está relacionada com a desnutrição e a pobreza), a assistência universal a todos os partos por pessoal especializado, o acesso universal à água potável e ao saneamento, e inclusive o acesso universal aos serviços telefônicos e de Internet.(***)

O exercício desses direitos é uma responsabilidade dos governos “de forma individual e mediante a assistência e a cooperação internacionais, especialmente econômica e técnica, até o máximo de recursos disponíveis”, segundo o Pacto Internacional dos DESC. A priorização de recursos também se aplica à ajuda internacional. Para monitorar o uso efetivo dos máximos recursos disponíveis (inclusive os de cooperação internacional), deve ser reforçado o Exame Periódico Universal do Conselho de Direitos Humanos. Além disso, o Protocolo Facultativo do Pacto dos DESC deve ser ratificado para permitir à cidadania reclamar seus direitos ante os tribunais, e as agências bilaterais e multilaterais de desenvolvimento têm que se tornar responsáveis de seus efeitos nos direitos humanos.

Por outro lado, os indicadores de sustentabilidade se referem ao esgotamento de determinadas reservas ou ativos não renováveis. Quando eles formam parte de acordos internacionais comuns globais estão obrigados a garantir a sustentabilidade. Ao contrario do bem-estar humano, que pode ser formulado em termos de objetivos, a sustentabilidade deve ser abordada em termos de limites. Os limites podem ser formulados como uma proibição absoluta de certas atividades, como a proibição de caça de baleias ou da emissão de gases que esgotam o ozônio (Protocolo de Montreal), ou podem estabelecer quotas para assegurar o não esgotamento, que podem ser destinadas aos atores econômicos, através dos diferentes mecanismos de mercado e não de mercado, respeitando a equidade e os princípios de solidariedade.

Qualquer formulação de "objetivos de desenvolvimento sustentável” que não inclua objetivos adequados de mudança climática ou não aborde aspectos dos direitos humanos e da sustentabilidade ao mesmo tempo e de uma maneira equilibrada, corre o risco de desbaratar a agenda integral de desenvolvimento sustentável sem nenhum benefício compensatório.

Em lugar de fixar novas metas, o que se necessita é um sistema de monitoramento e prestação de contas que possa fazer com que todos os governos, os de Norte e os do Sul, realmente fiquem sujeitos à revisão de suas obrigações domésticas e, ao mesmo tempo, criem um direito de apoio quando essas obrigações internas se cumpram, mas os recursos disponíveis ainda não sejam suficientes. Ao não cumprir com sua responsabilidade de criar um sistema financeiro global sustentável, os países mais poderosos tampouco estão permitindo aos governos dos países pobres utilizar seus recursos disponíveis adequadamente. Devem ser estabelecidos novos direitos e mecanismos institucionais em relação à sustentabilidade.

Este “direito a um futuro” é a tarefa mais urgente do presente. Trata-se da natureza, sim, mas também se trata de nossos netos e de nossa própria dignidade, das expectativas de 99 por cento dos sete bilhões de homens e mulheres, meninas e meninos do mundo a quem se prometeu a sustentabilidade há duas décadas e que, em seu lugar encontraram que suas esperanças e aspirações se afundam em fichas de apostas de um cassino financeiro global que está fora do seu controle. Os cidadãos e cidadãs de todo o mundo estão exigindo uma mudança, e este informe é só uma forma adicional de fazer ouvir sua voz. A mensagem não poderia ser mais clara: as pessoas têm direito a um futuro e o futuro começa agora.

(*)Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida pela sua presidenta, a ex-primeira ministra norueguesa Gro Harlem Brundtland http://en.wikipedia.org/wiki/Gro_Harlem_Brundtland  . Publicou o informe intitulado Nosso futuro comum que inspirou as deliberações da Cúpula da Terra.
(**)O informe está disponível em http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr/
(***)Artigo 19 da Declaração Universal dos  Direitos Humanos: Todo individuo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de pesquisar e receber informações e opiniões e o de difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão.